Transcrição da entrevista de Ágio Pereira ao programa Sociedade das Nações - SIC Notícias

>> 20100102





Martim Cabral: Bem-vindos à Sociedade das Nações, um programa semanal sobre a actualidade internacional, aqui na SIC Notícias.

Como aconteceu no continente africano, no rescaldo do processo revolucionário português, as autoridades de transição de Lisboa nos anos 70, abandonaram Timor à sua sorte. Numa fuga desordenada, e pouco honrosa que levou à invasão indonésia e a uma brutal ocupação de décadas. Mas foi também Portugal, já normalizado e reconciliado que conduziu o processo de reconhecimento internacional da Resistência que conduziu por sua vez à Independência. Esta Independência, claro, é considerada por alguns como “uma flor delicada”. Tem tido muitos obstáculos, avanços, recuos, crises, golpes, tentativas de assassínio e carências. Outros dirão simplesmente que foi prematura. Ágio Pereira, Porta-voz do Governo e Secretário de Estado do Conselho de Ministros de Timor-Leste é o nosso convidado de hoje. Seja bem-vindo. Está de acordo, Timor não estava de facto preparado para a Independência?

Ágio Pereira: Bom, se estar preparado para governar num regime de democracia liberal, tal como toda a Europa Ocidental já experimentou durante décadas? Podemos dizer que foi uma iniciativa muito difícil à meia-noite de 20 de Maio de 2002. Preparados mentalmente para assumir as responsabilidades, não obstante os desafios, sim estávamos preparados, sim.

Martim Cabral: Mas a situação desde então, talvez compreensivelmente, tem sido agitada. Nem se pode dizer que hoje em dia a situação política em Timor esteja já mais estável.

Ágio Pereira: Mais estável comparando com, por exemplo com 2006 ou 2002. Por exemplo, a 4 de Dezembro de 2002 houve enormes desafios. Manifestações de juventude, incêndios a prédios na cidade e ironicamente quase cada ano, nós tínhamos desafios, por exemplo, Julho de 2004 tivemos uma grande manifestação dos Veteranos, sob a liderança do, ex-Comandante das FALINTIL, ELi Fohorai Bo'ot, em que a Polícia pela primeira vez usou força excessiva contra estes elementos. Psicologicamente foi um choque enorme porque nunca vimos ex-Veteranos a confrontar com os desafios da Independência e o peso da polícia. E ironicamente, e exactamente um ano depois foi a manifestação de 19 dias da nossa Igreja, Igreja Católica, contra o Governo do Dr. Alkatiri, também abanou os alicerces da governação do Governo do dia.

Martim Cabral: Isto é luta pelo poder ou é um reflexo da pobreza, por exemplo, ou da extrema pobreza de Timor?

Ágio Pereira: Pode ser da pobreza como um dos factores mas também é a realidade de uma situação pós-conflito. Um pós-conflito que demorou quase um quarto de século, em que praticamente 75 a 80% dos líderes padeceram neste período e nós entrámos na era da Independência com um deficit enorme de líderes que nos anos 60 / 70 nos orientaram, então penso que essa lacuna não foi bem preenchida porque, de repente, depois desta unidade nacional que permitiu o 30 de Agosto de 99, nós distribuí-mo-nos todos por partidos políticos e o povo começou a ver “então onde é que está essa referência de liderança”. De repente este está neste partido, aquele está naquele partido, que a referência única, a visão comum da independência começou a dissipar-se para dar lugar à democracia liberal e democracia liberal necessariamente é confrontacionista, é adversarial. De maneira que o nosso povo começou a aprender “o que é que é isto de Democracia?” e estamos ainda a aprender hoje depois de 7 anos e 8 meses.

Nuno Rogeiro: Quando estávamos a preparar este programa eu lembrei-me muito a propósito de Timor, do Natal. O Natal foi um nascimento misterioso e inesperado e a Independência de Timor para muitas pessoas foi também inesperada. Se virmos, por exemplo, o que se passou com o Massacre de Sta. Cruz, quem é que diria, quando se deu o Massacre de Sta. Cruz que Timor iria ser independente poucos anos depois? Ágio Pereira conhecia bem a comunidade timorense exilada na Austrália, em Portugal, noutros sítios. Essa comunidade achava que a independência havia de chegar ou não ou já estava a desesperar?

Ágio Pereira: Não, porque nem todos nós podíamos prever o futuro e a independência, tínhamos convicção de que cedo ou tarde a independência iria estar à nossa porta porque a convicção de que a justiça iria prevalecer sobre a tirania, isso sempre foi uma convicção nossa, de todos os nossos líderes, da nossa igreja, dos nossos amigos em Portugal mas quando é que isso iria acontecer? É um bocado como o Muro de Berlim que caiu de repente e todos ficaram assustados e não sabiam como é que iam lidar com a situação pós Muro de Berlim e nós também, quando se assinou o Acordo de 5 de Maio, foi na consequência da queda da ditadura do General Suharto e a Indonésia ficou a ter como Presidente, pela primeira vez, um Presidente não Javanês é do Sulawesi, o Presidente Habibie que era o Vice-Presidente. Foi também difícil para a Indonésia lidar com...

Nuno Rogeiro: Foi uma espécie do Gorbatchov indonésio...

Ágio Pereira: Exacto, Perestroika ou Glasnost. De repende uma nova circunstância, uma nova conjuntura, foi muito difícil para o próprio povo indonésio lidar com a situação pós Suharto e para nós foi como uma benção porque abriu um espaço enorme para uma solução duradoura, que a própria Resolução 37/30 de 82 exigia ao Secretário-Geral que promovesse todas as circunstâncias para vir a viabilizar e aí conseguimos com o Acordo de 5 de Maio.

Nuno Rogeiro: O Ágio Pereira falou de duas coisas que às vezes esquecemos no processo timorense, um é o facto da sociedade timorense como outras estar hoje liberalizada, há muitas forças políticas, têm projectos diferentes, é natural e por outro lado o facto de , infelizmente, Timor ainda não ter os quadros técnicos, científicos, políticos até, que precisava. A criação desses quadros, acha que está a fazer-se? Está a demorar demasiado tempo ou gostava que fosse mais rápida? Acha que Portugal, por exemplo, está a ajudar nessa formação?

Ágio Pereira: A última parte da sua pergunta, sim Portugal tem tido um papel preponderante, não só no reforço do uso da língua portuguesa que o nosso Estado adoptou como língua oficial, a língua portuguesa nunca desapareceu do nosso país, sempre esteve na Resistência, a comunicação oficial sempre foi em Português, tanto com as Nações Unidas como com a comunidade internacional em geral mas também Portugal, devido aos laços naturais, da história, da religião, da cultura, da solidariedade entre os dois povos nos momentos mais difíceis da nossa luta, consolidou uma amizade muito especial que dá até espaço enorme para nos criticarmos uns aos outros. De maneira que Portugal até agora tem sido preponderante na área dos recursos humanos, na área da educação e na área de ajudar-nos a planear o Estado para podermos descentralizar o poder, por exemplo, tem sido uma enorme ajuda.

Nuno Rogeiro: Mas o que é que falta mais neste momento em Timor em termos de Recursos Humanos, o que é que falta mais? Professores, técnicos, engenheiros, pessoas para a reconstrução de infra-estruturas, pessoas que planeiem, digamos assim, o futuro? Se tivesse de fazer uma lista, uma lista de Natal, imagine, o que é que gostava que lhe pusessem no seu sapato de Natal?

Ágio Pereira: Bom, uma vantagem para nós quando começámos a edificar o Estado soberano de direito democrático, à meia-noite de 20 de Maio de 2002, que é um projecto enorme, um contracto social, é que nós não tínhamos nada para destruir mas para começar. De maneira que começámos tudo do zero. Então tivemos um espaço enorme de inovação e nós então vimos que recursos humanos é naturalmente um problema fundamental e não é um problema que se resolve da noite para o dia. É a longo prazo, precisamos de gerações. Ainda ontem tive encontro com os estudantes timorenses em Coimbra, foi isso que apelei para eles que “vocês têm de ser os novos heróis do nosso pais”, o heroísmo das nossas FALINTIL, dos nossos guerrilheiros parou em 30 de Agosto de 99. O novo Estado precisa de jovens que tenham ideias concretas sobre como é que vamos consolidar o Estado e sobretudo como transformá-las em realidade para o benefício do nosso povo. E isso é o que nós achamos que é o desafio enorme e reflexão para o Natal.

Martim Cabral: Timor tem um Fundo que eu julgo que foi copiado e modelado no Fundo Norueguês de Petróleo...

Ágio Pereira: Sim, sim...

Martim Cabral: Portanto é um Fundo financeiro de dinheiro obtido pelo petróleo e do gás. A última vez que ouvi, falava-se em 3 mil milhões de dólares, não sei se é o número correcto se é...

Ágio Pereira: 5.3 biliões de dólares.

Martim Cabral: Esse dinheiro não está a ser utilizado!? Do que eu percebi o Orçamento do Estado, portanto, não utiliza na realidade esses recursos.

Ágio Pereira: Pelo contrário, o Orçamento do Estado depende largamente desses recursos e a Lei só permite que o Governo e o Parlamento retirem do Fundo do Petróleo aquilo que se chama ISI – Istimated Sustainable Income.

Martim Cabral: Portanto, o rendimento sustentável estimado...

Ágio Pereira: De maneira que, para 2010, por exemplo, estima-se que serão de 502 milhões e é essa quantia exactamente que o Parlamento já aprovou para o Governo usar para 2010.

Nuno Rogeiro: Esse Fundo está fisicamente ou materialmente, está no fundo, sobre o controle só do Governo Timorense, há instituições internacionais que providenciam para a sua supervisão? Sei que durante muito tempo houve essa discussão, como é que iria ser o melhor controle financeiro desse Fundo. Acha que hoje está garantido esse controle financeiro, a transparência, digamos assim, como se costuma dizer, da utilização desse Fundo?

Ágio Pereira: Sim, sim. O órgão consultivo do Fundo do Petróleo que o nosso Estado tem, supervisiona esse Fundo e a execução do Orçamento, usando esse Fundo, passa necessariamente por aquilo que chamamos BPA – Bank Payment Authority, que é o nosso futuro Banco Central. De maneira que há um controle total, uma transparência total no Fundo.

Nuno Rogeiro: No fundo, digamos, os Fundos financeiros estão depositados numa instituição bancária credível?

Ágio Pereira: Sim, sim em Nova Iorque, naquilo que é que se chama Bonds.

Nuno Rogeiro: E isso sofreu com a actual crise ou não?

Ágio Pereira: Não, não porque foi um investimento seguro embora de muito baixo rendimento.

Nuno Rogeiro: Mais “mais vale um pássaro na mão que dois a voar”.

Ágio Pereira: Exacto. Agora estamos a considerar aquilo que se chama diversificação deste investimento de acordo com os consultores, os peritos que nos dão conselhos sobre esta matéria.

Nuno Rogeiro: Mas Martim, pegando numa coisa que estavas a dizer, falaste no acordo de petróleo, como nós sabemos Timor poderia ter tido outro acesso ao petróleo se formos só pela de saber onde é que ele está. Quer dizer, a maior parte está em território timorense, território marítimo, no entanto Timor teve que aceitar de certa forma um pacto com a Austrália, que é considerado um pacto leonino, um bocadinho desfavorável para Timor, acha que foi uma boa solução ou acha que Timor deveria continuar a lutar por um acréscimo dos rendimentos do petróleo que está nas suas águas territoriais?

Ágio Pereira: Bom, sim. Obviamente nós gostaríamos que o Acordo fosse melhor mas no âmbito das circunstâncias em que nós vivíamos em 2002, no que concerne ao Mar de Timor, aquilo que chamamos JPDA – Joint Project Development Autorithy, foi uma solução boa para o nosso Estado, na medida em que, quando a Austrália e Indonésia acordavam nos termos deste acordo, similarmente, houve uma distribuição de 50 / 50 e quando nos reunimos com a Austrália para redistribuir, num quadro já mais legal por causa da Lei internacional, 90 / 10 a favor de Timor-Leste. Portanto, foi no tempo da UNTAET e foi uma saída que penso que foi boa, embora nós, como eu disse, podia ser melhor. No que concerne ao Sunrise Troubador, aquilo que colectivamente chamam de “Greater Sunrise”, é que é mais gás. Nós ainda estamos a negociar. Se o gasoduto irá para Timor ou para a Austrália, a companhia com base na Austrália, a Woodwise, a companhia que ganhou o contracto para operar e explorar, ainda está com o princípio de que a decisão será a inviabilidade comercial, portanto, do ponto de vista deles é preferível ir para a Austrália, Timor-Leste acha que devia ir vir para Timor pelas razões óbvias em termos de toda a indústria secundária que iria derivar deste gasoduto vir para Timor-Leste mas é, neste momento, uma coisa que está na nossa agenda de prioridades. E é um consenso no nosso país que deveria vir para Timor-Leste.

Martim Cabral: Deixe-me perguntar-lhe também sobre um assunto. Timor nasceu, como todos nos lembramos, na violência, foi também ocupado violentamente e há, não há, poderá haver uma hipótese de se estudar, de analisar, de reportar, de criar uma Comissão sobre reconciliação mas também nomear e identificar os culpados de toda uma série de crimes que terão ocorrido ao longo dos anos. O Presidente Ramos-Horta é veementemente contra qualquer espécie de comissão, “esqueçam o passado vamos olhar para o futuro”, “esquece o passado, não é preciso analisar mais o que se passou”. Está de acordo com isso?

Ágio Pereira: Bom, em linha geral sim porque é importante ter como Estado de Direito soberano uma postura estratégica para o interesse nacional. E nesse aspecto nós consideramos uma Indonésia que, como Timor, nós começámos a Democracia mais ou menos ao mesmo tempo. De maneira que temos também de entender a fragilidade da democracia do nosso vizinho que é um pais gigante e que é o maior país muçulmano mas secular, democrático do mundo. Por outro lado nós temos de entender também que, para nós consolidarmos o nosso Estado Soberano de Direito Democrático precisamos de uma unidade nacional muito séria que não pode ser politizada demais senão o nosso povo pode ficar dividido. A unidade que se consolidou a 30 de Agosto de 99 ainda é uma unidade que tem de ser bem entendida e que após a violência de 99 temos no Timor Ocidental cerca de 100 mil timorenses e temos na Indonésia cerca de 8 mil estudantes timorenses a estudar que graças ao bom entendimento da nossa situação, a Indonésia identifica-os como estudantes nacionais, portanto não pagam propinas internacionais, então tudo isso, considerando também a fragilidade das nossas fronteiras é um Estado soberano de 7 anos e 8 meses, temos que de facto entender bem a estratégia mais adequada para podermos lidar com o passado.

Nuno Rogeiro: Os últimos dois anos foram de alguma instabilidade em Timor, enfim, para houve enfim o trágico acontecimento do ataque a Ramos-Horta e também a Xanana Gusmão de outra forma e na altura deu a impressão que não estava tudo esclarecido sobre esses ataques, quer dizer, a ideia que ficou para fora é de que não podia ser apenas elementos desgarrados das antigas forças de segurança que tinham participado naquilo, podia haver uma mão escondida por trás de tudo. Qual é a sua opinião sobre isso e acha que as instituições timorenses conseguiram descobrir alguma coisa ou foram realmente elementos isolados, loucos ou enlouquecidos ou loucos de poder que tentaram atentar contra a vida destes homens?

Ágio Pereira: Primeiro, os nossos Tribunais estão a lidar com isto, estão a tentar separar alhos e bugalhos e encontrar a agulha no palheiro. Em segundo, a situação em concreto em 11 de Fevereiro de 2008 foi que, homens armados entraram na residência do Chefe de Estado e como consequência infeliz, dois foram mortos. Em qualquer situação num Estado isso entende-se que é uma situação perigosa e que as consequências são lastimáveis mas no entanto é a casa do Chefe de Estado que homens armados entraram. Porquê ou não entraram, bom, é outra questão. Como é que acabaram por chegar aí às 7h00 da manhã ou pouco antes das 7 da manhã é quando o Presidente da República estava a fazer o seu exercício matinal. Está a ser investigado, uma investigação bastante longa, porque a situação, de acordo com os investigadores é complexa porque a nossa Constituição prevê isso como qualquer Constituição de democracia liberal, todo o cidadão é inocente até provado o contrário. Então os Tribunais agora estão a tentar descobrir de facto o que é que aconteceu e quem deveria ser culpado desta situação toda.

Martim Cabral: Timor existe com o apoio da ONU para governar, apoio militar e policial doutros países também, inclusivamente Portugal, quanto tempo é que prevê que esta situação irá continuar? Vai precisar de depender directamente de organismos internacionais ou de outros países. Tem algum calendário em mente?

Ágio Pereira: Segundo o nosso Presidente, e há um consenso, é que no mínimo a ONU deveria dar-nos assistência directa como tem dado e agora sob esse formato, até 2012. Isto porquê? Porque haverá um calendário, a segunda eleição legislativa desde 20 de Maio de 2002 e cremos que sim, até 2012, a ONU, Portugal, a comunidade internacional em geral iria entender melhor a consolidação dessa edificação do Estado de Direito democrático que Timor-Leste está a querer alcançar e com a ajuda das Nações Unidas. Ora, em termos gerais penso que como qualquer país em desenvolvimento iremos precisar de apoio da comunidade internacional, sendo em forma multilateral, Nações Unidas ou bilateral, ou em ambos os formatos, iremos precisar para muito tempo. Talvez uns 50 / 100 anos. Nós às vezes discutimos que os EUA ficou independente a 4 de Julho de 1776 com a Declaração de Independência e o seu preâmbulo a todos os valores, que de facto temos na nossa Constituição, até quando, depois de 200 anos os Estados Unidos é o que é. Precisamos também de 200 anos para conseguir a Democracia? Bom, isto é, deixamos para os historiadores, daqui a 100 anos.

Martim Cabral: Ágio Pereira obrigado por ter vindo aqui ao programa, desejo-lhe felicidades e um bom ano novo para si e para Timor.

Ágio Pereira: Igualmente.


nota: aconselha-se o visionamento da entrevista original, clicando na imagem acima. Esta entrevista foi editada online no sítio do programa Sociedade das Nações, da SIC Notícias no dia 28 de Dezembro de 2009.

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